Por cláudio Santos
Em certo
sentido, a obra recente de Renato Valle põe em dúvida algumas das ideias
lugar-comum sobre a prática do desenho na contemporaneidade. Sendo um artista
de comprida trajetória – com formação que data do fim dos anos 1970 –, suas
investigações não carregam a habitual pretensão de instaurar “tábula rasa”
própria; inversamente, lidam com os problemas acumulados ao longo de anos de
trabalho, recolocando-os de forma a sublinhar não só a potência do desenho,
como da experimentação. Trata-se de um artista que, desacomodado, não comprou
os enlatados da “morte das linguagens tradicionais”, espelhamento oportunista –
e, como tal, preguiçoso – da complexa assunção da “morte da arte”.
Assim é que,
após duas intensas décadas de pintura, o artista adentra o século XXI com uma
virada particular. Desde então, avassaladoramente, emerge o desenho e, com ele,
um “método” especial de trabalho que resvala também noutras linguagens (de
objetos à fotografia). As séries Diário de votos e ex-votos (2003-2005),
Diálogos (2005-2009) e Cristos e Anticristos (2010-2012) –
em parte apresentadas nesta exposição –, havendo sido produzidas nesse novo
contexto, evidenciam o lugar de protagonismo da ideia de processo no
trabalho de Renato Valle e, mais especificamente, no desenho. Se de um lado,
dadas as suas dimensões, é clara a dedicação processual demandada pelas obras,
de outro, há ainda processualidades menos declaradas, da ordem do conceito, da
experiência, do conhecimento, do corpo, das relações. Um processo horizontal –
que abarca e expande – e outro, verticalizado, que aprofunda e sobrepõe
camadas, se combinam numa prática que, assim, desdiz o monopólio das concepções
espontaneístas e intimistas do exercício do desenho, ainda tão difundidas:
Renato Valle faz ver que desenhar pode ser projeto de vida inteira.
Diário de
votos e ex-votos, a mais biográfica e catártica das séries – também por seu
caráter de “diário” público –, por exemplo, lança-se em dimensões de inteireza
por seus cinco mil desenhos e, sobretudo, na adesão à revolta diante da
violência cotidianamente acontecida e praticada contra a vida. Colocada na
antieconômica abordagem do universo dos ex-votos – que se metamorfoseiam em
imagens de crianças sequestradas, ou corpos crucificados –, a revolta ganha
corpo em proporções inesperadas, de ecos estridentes: a feição individual de
cada drama encenado naqueles 5x5cm de papel encorpa a dor coletiva entrevista
na gigantesca organização dos milhares de desenhos do artista. Sua estratégia
lança luz sobre as habituais invisibilidades, multiplicando-as de modo tal a se
tornarem inevitáveis ao olhar.
Nessa soma de
desamparos, todavia, Renato Valle não perde de vista as singularidades.
Agrupadas, as forças de cada desenho, como inegável presença das histórias
individuais, não se dissipam em coletividade indiferente. Um dos desafios
políticos da vida em sociedade – as relações entre instâncias micro e macro, em
suas tensões de visibilidade e anulação – é, assim, vivenciado pela obra de
Renato metafórica e linguisticamente: o painel de cinco mil desenhos conforma
ritmos de intensidades e suavizações do preto, negociando nossa atenção
constantemente. Escala, distância e proximidade circunscrevem a relação a ser travada
com o corpo do outro, espectador, em contiguidade com a experiência das
salas de ex-votos espalhadas pelo país ou, ainda, com o hábito de leitura de um
jornal, cujos valores e urgências dos conteúdos graficamente se impõem e se
combatem. A dimensão política do trabalho coloca-se, então, para além de
temáticas ou engajamentos, instaurando na obra do artista uma politização da
experiência estética que, fundamentalmente, está calcada na experimentação.
Com eloquência,
é isso o que inspira a série Diálogos,
cujo título, longe de ser um elemento retórico, é mesmo síntese do processo de
sua criação: ao longo de cinco anos, Renato Valle realizou residências em
instituições culturais do Recife, nelas produzindo desenhos de grandes
dimensões de forma cambiante, amplamente imbricada com o público, a história e
as condições de cada local. Nos trabalhos da série, leituras críticas de obras
presentes nas coleções dessas instituições se alternam com imagens suscitadas
pelos encontros que foram possíveis no seio do período de cada residência – de
um lado, personagens de pinturas históricas aparecem recontextualizados, de
outro, surgem os rostos e pensamentos daqueles que participaram da criação das
obras.
Dando forma aos
plurais pontos de partida dos desenhos, os mais variados métodos de trabalho:
desenhos em negativo (à maneira negra, realizados por subtração, com o
apagamento de partes de uma prévia mancha de grafite); desenhos coletivos (um
dos quais sequer recebeu o gesto do artista); desenhos programados e, inversamente,
desenhos que, sem ponto de chegada a priori, configuraram-se como imagem
ao longo de seu processo de inscrição sobre a superfície; desenhos realizados a
partir de projeções de imagens; desenhos escritos. Campos chapados de cor,
linhas solitárias ou emaranhadas em aparente desordem ocupam, com liberdade, as
largas lonas cuja textura, mais adiante, propiciou que o artista se colocasse
em posição de dúvida, investigação, experimentação. Diálogos – longe do
conforto da pincelada que lambe, ao passo que desidentifica, a superfície (modo
pictórico comum à obra anterior de Renato Valle) – coloca o desafio de
trazer à luz o plano sobre o qual se desenha, considerando-o como eixo
vertebral do próprio desenhar.
Esse esforço de
não alienação do material espalha-se, por sua vez, sobre as relações
estabelecidas entre a obra e o outro. Se a arte brasileira tem sido
comumente pensada por suas intencionalidades participativas, a obra de Valle é
um campo de rica vivência nessa direção sem, todavia, recorrer às já
automatizadas formas de “interação”. Valendo-se do caráter fenomenológico do
desenho – o radical gerúndio de algo que só “é” enquanto “sendo” –, o
artista propõe desenhos coletivos; cada traço do outro transforma
qualquer possível identidade para as imagens, todo risco ressignifica o traço
vizinho, cada opinião tem a força de reestruturar a experiência, e mesmo as
mais mudas presenças ativam certas sensibilidades do desenhar. A participação
se dá, assim, numa complexidade que transborda a ideia de “interação”, gozando
da discrição do ato de grafar, ao passo que explora sua potência. Nas relações
estabelecidas, e na produção de subjetividade decorrente, o desenho não tem
papel acessório. Como centro da experiência, a série Diálogos tem o
mérito de não haver instrumentalizado a linguagem em prol de uma vaga ideia de
“participação” – especialmente demandada nesses tempos de crise do modelo
democrático –, levando, ainda mais adiante, em proporções significativas, a
força política da arte.
Tal politização
que, longe de ser instrumental, está presente em Diários de votos e ex-votos
e Diálogos, aparece também na recente Cristos e Anticristos,
série que, centrada em experimentações materiais e sígnicas com a imagem de
Cristo crucificado, retoma a religiosidade recorrente na obra de Renato Valle
desde os anos 1980. Nesta, contudo, o político tematicamente problematiza a
religião – especialmente a instituição religiosa. Apropriando-se de certa
lógica pop pela utilização de imagens estereotipadas do Cristo, bem como
por sua reprodução e multiplicação, Renato Valle procede em direções
complementares: num sentido, anseia desmitificar o personagem Cristo,
“humanizando-o” e, assim, desautorizando-o como figura de poder para, por outro
lado, retomá-lo como um “homem qualquer”, ainda que singular; por outro lado, e
consequentemente, termina por criticar a própria concepção desse personagem,
denunciando o esvaziamento de sua história e “ensinamentos” promovido pela
hierarquização religiosa e consequente comodificação, o que concorre para sua
total desumanização. A ambiguidade da situação – e da obra – coloca-se, assim,
em chave pop: a multiplicação da imagem do Cristo crucificado
pretende-se crítica, ao passo que se sabe reiterativa; paradoxo típico do
capitalismo e da política em tempos de neoliberalismo. Contradição, ou
convivência de forças díspares, que de alguma maneira se expressa no encontro
de variações “antagônicas” dos Cristos, como nos nados sincronizados entre
pretos e brancos – um dos muitos experimentos tridimensionais da série, que foi
desenvolvida ao longo de quase dois anos de pesquisa na Universidade Federal de
Pernambuco, em diálogo com estudantes e técnicos.
A dimensão
processual da obra recente de Renato Valle consolida-se, assim, em Cristos e
Anticristos, cuja evidente abordagem crítica lançada sobre a instituição
religiosa coloca em perspectiva as preocupações políticas que, de modo geral,
atravessam suas últimas séries. Processualmente, suas pesquisas se mostram
dedicadas a instâncias variadas de experimentação – como o material, a
participação, as relações sígnicas e corporais –, articuladas à vontade de
colocar-se politicamente. Como denota o título do desenho Canudos, Caneca,
Diretas... e o Brasil não mais resiste (2006) – que, integrante da série Diálogos,
relê a pintura de Murillo La Greca sobre o episódio de Canudos
(especificamente, a morte de Antônio Conselheiro) –, Valle reivindica, com sua
obra, um espaço de resistência política pautado por uma produção experimental
de subjetividade, inclusive quando envolvida em questões tão densas e
conflitivas como a devoção, a violência e a religiosidade. Sabemos que nos
perigosos territórios onde crescem forças que podem machucar, igualm
ente surgem
aquelas que, ainda que não nos salvem, podem sem dúvida nos ajudar a resistir.
O desenho é hoje – como tem sido sempre, a despeito da negação tantas vezes
insistida – também um território de perigos, no qual Renato Valle tem se
arriscado, experimentalmente.
Clarissa
Diniz
SERVIÇO:
Exposição
“Cristos Anônimos” – Religiosidade política na obra de Renato Valle
Vernissage:
13/07, às 19h00
Período:
14/07 a 14/09/2012
Horário: das
9 às 21h00 de segunda a sexta e das 9 às 13h00 aos sábados
Local:
Galeria de Arte Ronaldo White
RUA MANUEL
CLEMENTE, Nº 136 – CENTRO
GARANHUNS
INFORMAÇÕES E
AGENDAMENTOS – 87 3761-2658
Entrada
Gratuita
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