" Sigo em frente, pra frente eu vou
sigo enfrentando as ondas onde muita gente naufragou ..."



sexta-feira, 6 de julho de 2012

Desenho,experimentação e religosidade poílitica na obra de Renato Valle



Por cláudio Santos

 Em certo sentido, a obra recente de Renato Valle põe em dúvida algumas das ideias lugar-comum sobre a prática do desenho na contemporaneidade. Sendo um artista de comprida trajetória – com formação que data do fim dos anos 1970 –, suas investigações não carregam a habitual pretensão de instaurar “tábula rasa” própria; inversamente, lidam com os problemas acumulados ao longo de anos de trabalho, recolocando-os de forma a sublinhar não só a potência do desenho, como da experimentação. Trata-se de um artista que, desacomodado, não comprou os enlatados da “morte das linguagens tradicionais”, espelhamento oportunista – e, como tal, preguiçoso – da complexa assunção da “morte da arte”.

Assim é que, após duas intensas décadas de pintura, o artista adentra o século XXI com uma virada particular. Desde então, avassaladoramente, emerge o desenho e, com ele, um “método” especial de trabalho que resvala também noutras linguagens (de objetos à fotografia). As séries Diário de votos e ex-votos (2003-2005), Diálogos (2005-2009) e Cristos e Anticristos (2010-2012) – em parte apresentadas nesta exposição –, havendo sido produzidas nesse novo contexto, evidenciam o lugar de protagonismo da ideia de processo no trabalho de Renato Valle e, mais especificamente, no desenho. Se de um lado, dadas as suas dimensões, é clara a dedicação processual demandada pelas obras, de outro, há ainda processualidades menos declaradas, da ordem do conceito, da experiência, do conhecimento, do corpo, das relações. Um processo horizontal – que abarca e expande – e outro, verticalizado, que aprofunda e sobrepõe camadas, se combinam numa prática que, assim, desdiz o monopólio das concepções espontaneístas e intimistas do exercício do desenho, ainda tão difundidas: Renato Valle faz ver que desenhar pode ser projeto de vida inteira.

Diário de votos e ex-votos, a mais biográfica e catártica das séries – também por seu caráter de “diário” público –, por exemplo, lança-se em dimensões de inteireza por seus cinco mil desenhos e, sobretudo, na adesão à revolta diante da violência cotidianamente acontecida e praticada contra a vida. Colocada na antieconômica abordagem do universo dos ex-votos – que se metamorfoseiam em imagens de crianças sequestradas, ou corpos crucificados –, a revolta ganha corpo em proporções inesperadas, de ecos estridentes: a feição individual de cada drama encenado naqueles 5x5cm de papel encorpa a dor coletiva entrevista na gigantesca organização dos milhares de desenhos do artista. Sua estratégia lança luz sobre as habituais invisibilidades, multiplicando-as de modo tal a se tornarem inevitáveis ao olhar.

Nessa soma de desamparos, todavia, Renato Valle não perde de vista as singularidades. Agrupadas, as forças de cada desenho, como inegável presença das histórias individuais, não se dissipam em coletividade indiferente. Um dos desafios políticos da vida em sociedade – as relações entre instâncias micro e macro, em suas tensões de visibilidade e anulação – é, assim, vivenciado pela obra de Renato metafórica e linguisticamente: o painel de cinco mil desenhos conforma ritmos de intensidades e suavizações do preto, negociando nossa atenção constantemente. Escala, distância e proximidade circunscrevem a relação a ser travada com o corpo do outro, espectador, em contiguidade com a experiência das salas de ex-votos espalhadas pelo país ou, ainda, com o hábito de leitura de um jornal, cujos valores e urgências dos conteúdos graficamente se impõem e se combatem. A dimensão política do trabalho coloca-se, então, para além de temáticas ou engajamentos, instaurando na obra do artista uma politização da experiência estética que, fundamentalmente, está calcada na experimentação.

Com eloquência, é isso o que inspira a série Diálogos, cujo título, longe de ser um elemento retórico, é mesmo síntese do processo de sua criação: ao longo de cinco anos, Renato Valle realizou residências em instituições culturais do Recife, nelas produzindo desenhos de grandes dimensões de forma cambiante, amplamente imbricada com o público, a história e as condições de cada local. Nos trabalhos da série, leituras críticas de obras presentes nas coleções dessas instituições se alternam com imagens suscitadas pelos encontros que foram possíveis no seio do período de cada residência – de um lado, personagens de pinturas históricas aparecem recontextualizados, de outro, surgem os rostos e pensamentos daqueles que participaram da criação das obras.

Dando forma aos plurais pontos de partida dos desenhos, os mais variados métodos de trabalho: desenhos em negativo (à maneira negra, realizados por subtração, com o apagamento de partes de uma prévia mancha de grafite); desenhos coletivos (um dos quais sequer recebeu o gesto do artista); desenhos programados e, inversamente, desenhos que, sem ponto de chegada a priori, configuraram-se como imagem ao longo de seu processo de inscrição sobre a superfície; desenhos realizados a partir de projeções de imagens; desenhos escritos. Campos chapados de cor, linhas solitárias ou emaranhadas em aparente desordem ocupam, com liberdade, as largas lonas cuja textura, mais adiante, propiciou que o artista se colocasse em posição de dúvida, investigação, experimentação. Diálogos – longe do conforto da pincelada que lambe, ao passo que desidentifica, a superfície (modo pictórico comum à obra anterior de Renato Valle) – coloca o desafio de trazer à luz o plano sobre o qual se desenha, considerando-o como eixo vertebral do próprio desenhar.

Esse esforço de não alienação do material espalha-se, por sua vez, sobre as relações estabelecidas entre a obra e o outro. Se a arte brasileira tem sido comumente pensada por suas intencionalidades participativas, a obra de Valle é um campo de rica vivência nessa direção sem, todavia, recorrer às já automatizadas formas de “interação”. Valendo-se do caráter fenomenológico do desenho – o radical gerúndio de algo que só “é” enquanto “sendo”, o artista propõe desenhos coletivos; cada traço do outro transforma qualquer possível identidade para as imagens, todo risco ressignifica o traço vizinho, cada opinião tem a força de reestruturar a experiência, e mesmo as mais mudas presenças ativam certas sensibilidades do desenhar. A participação se dá, assim, numa complexidade que transborda a ideia de “interação”, gozando da discrição do ato de grafar, ao passo que explora sua potência. Nas relações estabelecidas, e na produção de subjetividade decorrente, o desenho não tem papel acessório. Como centro da experiência, a série Diálogos tem o mérito de não haver instrumentalizado a linguagem em prol de uma vaga ideia de “participação” – especialmente demandada nesses tempos de crise do modelo democrático –, levando, ainda mais adiante, em proporções significativas, a força política da arte.

Tal politização que, longe de ser instrumental, está presente em Diários de votos e ex-votos e Diálogos, aparece também na recente Cristos e Anticristos, série que, centrada em experimentações materiais e sígnicas com a imagem de Cristo crucificado, retoma a religiosidade recorrente na obra de Renato Valle desde os anos 1980. Nesta, contudo, o político tematicamente problematiza a religião – especialmente a instituição religiosa. Apropriando-se de certa lógica pop pela utilização de imagens estereotipadas do Cristo, bem como por sua reprodução e multiplicação, Renato Valle procede em direções complementares: num sentido, anseia desmitificar o personagem Cristo, “humanizando-o” e, assim, desautorizando-o como figura de poder para, por outro lado, retomá-lo como um “homem qualquer”, ainda que singular; por outro lado, e consequentemente, termina por criticar a própria concepção desse personagem, denunciando o esvaziamento de sua história e “ensinamentos” promovido pela hierarquização religiosa e consequente comodificação, o que concorre para sua total desumanização. A ambiguidade da situação – e da obra – coloca-se, assim, em chave pop: a multiplicação da imagem do Cristo crucificado pretende-se crítica, ao passo que se sabe reiterativa; paradoxo típico do capitalismo e da política em tempos de neoliberalismo. Contradição, ou convivência de forças díspares, que de alguma maneira se expressa no encontro de variações “antagônicas” dos Cristos, como nos nados sincronizados entre pretos e brancos – um dos muitos experimentos tridimensionais da série, que foi desenvolvida ao longo de quase dois anos de pesquisa na Universidade Federal de Pernambuco, em diálogo com estudantes e técnicos.

A dimensão processual da obra recente de Renato Valle consolida-se, assim, em Cristos e Anticristos, cuja evidente abordagem crítica lançada sobre a instituição religiosa coloca em perspectiva as preocupações políticas que, de modo geral, atravessam suas últimas séries. Processualmente, suas pesquisas se mostram dedicadas a instâncias variadas de experimentação – como o material, a participação, as relações sígnicas e corporais –, articuladas à vontade de colocar-se politicamente. Como denota o título do desenho Canudos, Caneca, Diretas... e o Brasil não mais resiste (2006) – que, integrante da série Diálogos, relê a pintura de Murillo La Greca sobre o episódio de Canudos (especificamente, a morte de Antônio Conselheiro) –, Valle reivindica, com sua obra, um espaço de resistência política pautado por uma produção experimental de subjetividade, inclusive quando envolvida em questões tão densas e conflitivas como a devoção, a violência e a religiosidade. Sabemos que nos perigosos territórios onde crescem forças que podem machucar, igualm
ente surgem aquelas que, ainda que não nos salvem, podem sem dúvida nos ajudar a resistir. O desenho é hoje – como tem sido sempre, a despeito da negação tantas vezes insistida – também um território de perigos, no qual Renato Valle tem se arriscado, experimentalmente.

Clarissa Diniz


SERVIÇO:

Exposição “Cristos Anônimos” – Religiosidade política na obra de Renato Valle
Vernissage: 13/07, às 19h00
Período: 14/07 a 14/09/2012
Horário: das 9 às 21h00 de segunda a sexta e das 9 às 13h00 aos sábados
Local: Galeria de Arte Ronaldo White
RUA MANUEL CLEMENTE, Nº 136 – CENTRO
GARANHUNS
INFORMAÇÕES E AGENDAMENTOS – 87 3761-2658
Entrada Gratuita


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