BBC Brasil
"Monique Menezes (Arquivo Pessoal)"
Por Cláudio Santos
Duas
semanas após chegarem a Nova Déli, capital da Índia, para trabalhar
como modelos, a paulista Monique Menezes, de 21 anos, e a gaúcha Thelma
Kaminski, 19, estranharam quando sua agente disse que elas passariam a
noite numa festa.
No evento, que terminou de madrugada e não
estava previsto no acordo fechado no Brasil, afirmam que tiveram de
servir uísque na boca de homens, que as assediaram e tentaram
acariciá-las.
Foi o primeiro sinal de que a viagem, até então
encarada como uma valiosa chance de ascensão profissional, não acabaria
bem. 'Depois daquele dia, ficamos assustadas, mas continuamos
trabalhando', diz Menezes à BBC Brasil. 'Estava lá para juntar dinheiro,
pretendia comprar uma casa quando voltasse.'
As condições, porém,
se agravaram. Segundo elas, em vez dos US$ 2.100 que deveriam receber
por mês da agência Be One Talent, gerida pela francesa Sabrina
Savouyaud, ganhavam US$ 160.
As sessões de fotos eram
progressivamente substituídas por novos trabalhos em festas como
hostesses ou balconistas, quando eram continuamente assediadas.
Savouyaud, dona da casa onde estavam hospedadas, passou a maltratá-las.
'Ela nos insultava, dizia que estávamos gordas', conta Kaminski. 'Uma vez, tomou a comida das nossas mãos.'
A
falta de higiene na residência, dizem as modelos, fez com que
adoecessem. 'A casa tinha 18 cachorros e três gatos. Os cachorros comiam
nas nossas panelas e os gatos urinavam nas camas', afirma Menezes.
Alarmadas
com a situação, buscaram na internet informações sobre a agente.
Encontraram numerosos relatos na imprensa indiana de outras modelos que
acusavam a francesa de maus-tratos.
Multa
Em fevereiro deste
ano, pouco após completarem um mês na Índia, as duas procuraram o
consulado brasileiro em busca de ajuda. Só então souberam que os
contratos que haviam assinado ainda no Brasil, em inglês, previam multa
de US$ 500 mil caso abandonassem o trabalho antes do prazo de seis
meses. Os acordos haviam sido propostos por 'scouters' (olheiros)
brasileiros. Por temer represálias, elas preferem não nomeá-los.
'Ele
me explicou que eu ganharia 50% de todos os trabalhos que fizesse, mas
não disse nada sobre a multa nem sobre as festas', diz Menezes. 'Como
não falava inglês na época, assinei na base da confiança.'
Os
diplomatas lhes disseram que o exagerado valor da multa invalidava os
contratos e ofereceram ajuda para hospedá-las caso quisessem deixar a
casa da agente. Antes, porém, as duas procuraram Savouyaud para exigir
os cachês pelos trabalhos, que, conforme o contrato, só seriam pagos no
final da viagem.
Menezes calcula que tinha US$ 5 mil a receber;
Kaminski, US$ 10 mil. 'Mas ela disse que, como tínhamos quebrado o
contrato, não pagaria nada e ainda cancelou nossos bilhetes de volta',
diz Menezes.
As duas deixaram a casa e se hospedaram no hotel pago
pelo consulado. A passagem de Kaminski foi comprada por seus pais; a de
Menezes, por um empresário indiano que se compadeceu ao ouvir a
história. 'Ao entrar no avião, nos abraçamos e choramos', lembra
Kaminski.
A BBC Brasil tentou contatar a Be One Talent, mas as mensagens enviadas à agência não foram respondidas.
Relatos frequentes
Segundo
o Ministério de Relações Exteriores, relatos como esse têm se tornado
cada vez mais comuns. 'É um fenômeno recente, estimulado pelo grande
sucesso das tops brasileiras nos últimos anos', diz à BBC Brasil Luiza
Lopes da Silva, diretora do Departamento Consular e de Brasileiros no
Exterior.
Ela diz que, nos últimos anos, ao menos 20 modelos
brasileiras relataram ter sofrido maus-tratos na Ásia. Lopes afirma, no
entanto, que 'essa é apenas a ponta do iceberg'.
'Calculamos que
entre 100 e 200 modelos brasileiras possam estar nessa situação na Ásia
neste momento.' Além da Índia, país com maior número de queixas, já
foram registrados casos na China, Coreia do Sul, Filipinas, Malásia e
Tailândia.
'Pouquíssimas denunciam as condições, por temerem
represálias no Brasil', diz a diplomata. 'Como muitas estão irregulares,
acham que não têm direitos.'
Segundo Lopes, o Itamaraty tem
orientado sua rede consular a colher o máximo de informações sempre que
receber denúncias de modelos no exterior, para identificar outras
brasileiras que estejam na mesma situação. Os esforços do órgão, no
entanto, têm se concentrado na prevenção.
'Fazer o trabalho de detetive é difícil e o faremos, mas sem uma ação de prevenção estaremos enxugando gelo.'
Cartilha
Para
evitar novas ocorrências, o Itamaraty lançou em maio uma Cartilha de
Orientações para o Trabalho no Exterior. A publicação, disponível na
internet e distribuída à rede consular brasileira, têm como principais
públicos-alvo modelos e jogadores de futebol.
A cartilha faz uma
série recomendações a quem receber oferta de trabalho no exterior, como
preferir a negociação com empresas de grande porte e registrar-se na
Embaixada brasileira assim que chegar ao país de destino.
O
compêndio também lista entidades privadas e representações diplomáticas
que podem auxiliá-lo se enfrentar dificuldades. Nos casos em que a
vítima estiver debilitada e não puder arcar com a volta, diz a
diplomata, o Itamaraty poderá bancá-la.
Segundo Lopes, entre as
modelos, as principais vítimas estão no começo da carreira. Costumam ser
recrutadas por olheiros em shoppings, concursos de beleza e discotecas.
No exterior, o trabalho consiste geralmente em sessões fotográficas em
galpões nas periferias de grandes cidades, para estampar catálogos de
lojas e sites. Vivem confinadas e recebem menos do que deveriam.
A
diplomata afirma que não foram identificados casos de modelos aliciadas
para exploração sexual, mas que algumas dançarinas brasileiras na
Turquia disseram ter sido pressionadas para se prostituir.
Embora
ainda pouco denunciados, os casos de modelos brasileiras exploradas na
Índia estão sendo tratados por uma CPI (Comissão Parlamentar de
Inquérito) na Câmara dos Deputados que investiga o tráfico de pessoas.
Em sessão fechada no último dia 19, a modelo Ludmila Verri, de 21 anos,
relatou ter enfrentado no país asiático condições semelhantes às
denunciadas por Kaminski e Menezes.
O caso de Verri, que passou
três meses em Mumbai em 2010 com duas colegas, também é objeto de uma
ação do Ministério Público Federal (MPF).
Fim da carreira
Enquanto
o MPF age para desnudar o esquema, Monique Menezes diz tentar
reorganizar sua vida em São Paulo. Após voltar da Índia, ela deixou de
ser modelo e perdeu o contato com os pais.
'Eles tinham muitas
expectativas com a viagem e não aceitaram minha volta antes do prazo',
ela conta. 'Acham que voltei porque fui fraca, porque quis.'
Hoje,
a jovem trabalha como recepcionista de uma transportadora. 'Além de
voltar sem nada, essa experiência destruiu minha vida.'
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